quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Carnavale

“Quanto riso, ó quanta alegria!! Mais de mil palhaços no salão!!! Arlequim está chorando pelo amor da Colombina, no meio da multidão...”

Girava. Girava como se todo o mundo se resumisse numa roda viva gigante. Como se todos os seus pensamentos pudessem evaporar do seu corpo junto com o suor que brotava por baixo da pesada fantasia repleta de tecidos pretos brancos e de linhas douradas. Os olhos fechados e crispados por baixo da mascara de Pierrot anunciava que já não estava em seu estado normal. E quando estava? Não sabia e também já não fazia questão de saber. Era carnaval. Carnavale, o momento em que o mundo esquece de princípios e moral para se render a desejos mundanos e carnais. Ele parava. A musica permanecia batendo como tambores tribais em seu peito folião, mas os pés já não se trançavam mais.

Só em meio à multidão... que tragédia grega, não?

Os olhos se viravam por trás da máscara na direção da voz, que ainda baixa e rouca sobressaia dos sons da folia momesca. E lá estava ele em seu impecável terno de grife e uma máscara do Fantasma da Ópera lhe cobrindo apenas metade do rosto.

Enfim... parece que finalmente está em casa não é? Pra que a máscara? Aqui não precisa de fantasia...

Eu gosto de estar de acordo com a tendência do momento.

Ele aproximava-se a passos calmos, passando pelas pessoas que ainda dançavam em seu balé suado e alegre. Risos, vozes, beijos, amassos e cheiros que se tornavam tão intensos a ponto de rasgar narinas desavisadas. Ele apenas riu, voltando a olhar pelo lugar. A música animada não parecia surtir o efeito de droga em sua alma.

E você... para que a mascara?

É carnaval... todos se mascaram em algum momento da vida. Ou a vida toda. Pouco importa. O que importa é a alegria, não?

O homem de terno virava-se na direção de uma das mulheres que passava por ali, uma Colombina em motivos ciganos, árabes, ele não sabia dizer , voltava a olhar para o Pierrot.

Num certo ponto sim. Toda máscara é uma espécie de proteção, meu caro Pierrot...

O homem de terno passava para trás do Pierrot e deixava os lábios frios quase tocarem o ouvido por cima do pano que compunha a mascara.

... Protege a si, de todos.. e quem protege você de você mesmo? Quanto tempo mais a alma do Arlequim ficará trancada aqui dentro deste peito oco e sem vida? Quanto tempo mais a música vai continuar ecoando no vazio sem propagar? Use as máscaras que quiser. Mas recobre a sua essência. É carnavale... época de desejos lascivos e mundanos...

Voltava o rosto mascarado na direção da Colombina que dançava leve e solta em meio a multidão. Os dedos hábeis desfaziam-se da máscara chorosa de Pierrot, colocando a alegre e vívida de Arlequim. A manta tão soturna e triste dava lugar aos tecidos quadriculados e vívidos da nova fantasia e os olhos por trás da máscara observavam fixos na imagem languida que dançava em toques de dança do ventre embalada pela música, pelo ritmo, pelo cheiro do lugar. Ele sentia o peito arder em vontade com cada palavra que o homem de terno lhe dizia aos ouvidos. E quando passou a ver o mundo com os olhos daquele homem de terno novamente? Não sabia. Não tinha idéia de quando ou como, apenas de que naquele momento, apenas a realização de seu desejo falava alto ao peito. E o homem de terno sorriu. Deixou que os dedos frios deslizassem pelo braço do Arlequim, até que pudessem tocar sua mão enluvada, lentamente fechou os dedos dele sobre o punhal prateado. O sorriso de canto dos lábios surgia no rosto do homem de terno. O Arlequim apenas fechou as mãos com força em torno do artefato colocado entre seus dedos. Como se as energias daquele objeto pudessem subir trançando em seu braço, sua pele, suas veias até o peito e explodisse num caleidoscópio de pensamentos. Ele soltava-se do homem de terno e caminhava em meio a multidão na direção da Colombina. Os olhos fixos nela, logo chamavam a atenção da mulher que sorria. Inocentemente ou provocativamente?

...Arlequim está chorando pelo amor da Colombina... no meio da multidão...

O homem de terno murmurava a cantiga muito mais para si mesmo, enquanto sorria dando as costas para o baile e caminhando para fora dali.

Naquele momento, inebriado pelo poder alucinante da música já não fazia muita diferença. Tomou-a pela cintura para girar, e girar e girar pelo salão..o punhal de prata brilhando nas costas da Colombina. Era Carnavale... sangue, suor.. e cerveja.

...CONTINUA.

domingo, 3 de janeiro de 2010

Queda Livre




Queda livre.

Há quantos metros do céu ou do chão?

E Faz diferença? Quando se cai de uma altura como esta não se sabe ao certo em que momento você está oscilando entre subir ou descer guiado por cada lufada de vento.

São seus pensamentos que indicam as oscilações, não o vento..não culpe a natureza pela sua natureza de espírito

Ele riu. Será que nem num momento único e crucial como aquele, ele lhe deixaria em paz? Não percebia ainda que não era a voz da sabedoria intrínseca que aquele homem de terno que caia ao seu lado possuía, que ele queria ouvir.

E a mim foi dado o direito de escolher, e eu escolhi cair. Pode então me dar licença e chegar um pouco para o lado? Não quero que os meus miolos se misturem com os seus.

O homem riu. Como se aquela queda, para ele tão fútil e ilógica fosse acabar numa chacina de massa cinzenta espalhada pelo chão árido do deserto. Deixou que a queda e o vento mudasse a sua posição, ficando de braços cruzados a olhar o que caia de ponta cabeça. Mergulhando em uma velocidade assustadora.

Sabe a única coisa que vai conseguir com isso?

Dor

Não.. sujar a roupa..

Ele riu. Tudo bem que dividiam a aparência mas dividir o humor negro era algo demais até para ele.

Suas piadas estão cada vez piores... Dor meu amigo.. Dor.. Um sábio dizia que para se esquecer uma dor, você arruma uma pior...

Paulo Coelho e o Diário de um mago para esquecer pensamentos ruins.. é algo milenar.. mas funciona por um curto período de tempo, e você sabe disso melhor do que ninguém, então porque gastar tempo precioso com uma queda estúpida? Não vai retornar de sua Egotrip desse jeito. Nem vai voltar a ser quem era. Encare os fatos e me poupe de sujar o meu Armani...

Eu não mandei que viesse

Teimosia. Porque diabos ele sempre fora tão teimoso, gastando assim todo o tempo que ainda possuíam, insistindo em coisas como aquela? Respirou fundo,voltando a mudar a posição, para cair de cabeça, tal como seu parceiro de queda livre.

Sabe.. persistência é algo que sempre admirei em você... Sua maior virtude.

Fechava os olhos ao ver o chão se aproximar de uma forma lancinante. O vento forte a deformar a face esticando peles.

E meu maior pecado também. Te vejo no inferno.

Estrondo. Ruir de solo. O barulho como trovões resolvessem sair da terra em direção aos céus. E silêncio. Largo e profundo como o mais denso da alma humana. Os dedos que se fechavam contra o solo, a nuvem de areia que começava a se dissipar. Com certo custo e o rosto trincado de dor levantava-se. Olhava ao redor e o nada. A solidão do deserto e ele não sabia se era reconfortante ou desesperador. Respirava fundo para então deixar as mãos baterem contra a roupa negra. Odiava quando ele estava certo.

sábado, 19 de dezembro de 2009

Reencontro


Os passos ecoavam pelo assoalho da sala vazia. Um enorme apartamento Studio. Paredes velhas mas e daí? O passado e as memórias são repletos delas. Paredes descascadas e sujas ou mesmo aquelas eternamente maqueadas para que pareça algo lindo e límpido, mas tudo não passa do que já foi. Ele preferia manter tudo exatamente intocável. Não importava quantos inquilinos estiveram por ali antes dele. As reclamações sempre seriam as mesmas e os efeitos também. Ajeitava o casaco surrado antes de deixar-se sentar na poltrona em frente a larga janela. O que podia ver dali? Nada. Mas se sentia bem em pela primeira vez após tanto tempo não ver ninguém, nem escutar a cidade e seus problemas chorando em seu ouvido. Um sorriso lento e débil que se desmanchava quando o liquido quente fluía da xícara para os lábios.

- É um bom lugar.. meio démodé.. mas um bom lugar.

Escutou a voz atrás de si.. e daí que ele sempre estaria ali com seu jeito senhor de si e dono da situação? Parecia antever seus passos quando queria.

- E você agora entende de decoração... se quiser o numero do decorador posso te dar o cartão qualquer dia...

O sorriso acentuado do homem de terno atrás de si se fez escutar. Sempre achou engraçado como não fazia ruído ao se mover. Ladino. Mas não adiantaria. Ao menos pra ele não havia elemento surpresa.

- Um pouco alto, não acha? – Indagava aproximando-se da janela engordurada e suja. Esticava o pescoço na idéia de talvez enxergar as luzes La embaixo, mas nem mesmo o cinza denso da neblina permitia.

- Assim não escuto o ruído do metrô... – respondia sem tirar os olhos da fumaça do café quente. A voz saia sem vida, seca.. Não estava para conversas. Queria aproveitar apenas para ouvir o barulho da chuva que começava a cair pesadamente sobre o seu telhado.

O homem de terno virou-se em sua direção, esfregava o dedo um no outro como se quisesse tirar os resquícios de gordura da janela.

- Não vai poder ficar para sempre aqui.... revirar o pó de coisas velhas nem sempre faz bem, e você sabe disso. Cada vez que volta, muda tudo de lugar, para não enxergar mais o que foi deixado aqui guardado..mas a essência.. o odor impregnado nas paredes.. – caminhava lentamente para o lado da poltrona.. os lábios frios e pálidos beiravam a tocar-lhe o lóbulo – a tinta descascada.. o barulho do assoalho.. o cheiro de coisa velha e putrefe.. esta impregnado por aqui.. e o espelho.. aquele espelho quebrado que teima em cobrir com um pano.. ele sempre.. sempre vai refletir a sua imagem meu amigo..sempre.. não importa o quanto você não queira ver.. sempre vai mostrar o que e quem você é...

E erguia-se.. sabia que a resposta viria. E talvez de forma violenta. A cicatriz no rosto era prova concreta da fúria provocada outrora. Mas inacreditavelmente, daquela vez ele não levantou. Permaneceu calado a aspirar o odor do café quente.. e mais um gole foi sorvido.

- Feche a porta quando sair.